quarta-feira, 27 de maio de 2009

Pseudotranscrições, parte I

Tudo começou quando um filho morria de vergonha porque o pai era Palhaço de um Circo sem futuro... E ele cresceu sem dizer onde é que o pai trabalhava pros amigos, sempre muito envergonhado, cresceu com a vida muito amargurada, se formou em outra coisa.

E, um certo dia, recebe a notícia que o pai está no leito de morte. Ele corre lá, entra no quarto, tira a gravata, tira o paletó, se ajoelha e diz:

"Pai, me ensina a ser palhaço..."

"Pai, me senina a ser palhaço..." — Repetiu.

"Isso não se ensina, seu bosta!"

(Cordel do Fogo Encantado — O Palhaço do Circo Sem Futuro.)

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Bom, não sei ao certo porque comecei com a transcrição acima, mas notei que há muito não dialogo com os raros leitores daqui e isso é um erro muito grande. Afinal, precisamos cultivar uma boa interrelação até para que o interesse de vocês por esse espaço aumente e o meu em construí-lo também. Estou com muitas idéias engavetadas e lamento muito por não poder colocá-las todas em prática.

Gostaria de agradecer aos que aqui visitam, mesmo que por curiosidade, e também aproveitar para comentar sobre os posts mais abaixo. Bom, os contos pertencentes ao "Arrial d'Ajuda" fazem parte de um possível-futuro-projeto que veio na minha cabeça após um encontro estudantil em vitória da conquista e minha recente onda nordestina. Sabe, as vezes a busca de uma identidade, ainda mais quando você é oprimido socialmente é algo que lhe dá forças e impulsiona. Talvez por isso nós, nordestinos, tenhamos alcançado um espaço de maior respeito dentro da sociedade, afinal temos nossa própria identidade cultural que é, não só respeitada, como apreciada.

Mas, em breve, devo trazer alguns textos mais reflexivos, se assim meu tempo permitir. E não se acanhem, comentem, não custa nada! :*

quinta-feira, 21 de maio de 2009

pseudocontos, parte II

Arraial d’Ajuda —

Ato segundo, sexto dia e meio.
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... Os dias se arrastaram rapidamente, como se alguém lá de cima fizesse as terras daqui e de aculá girarem mais rápido e as nuvens passarem dispersas, assim como as árvores, os arbustos, a passarada e todas as coisas vivas e não vivas. A única coisa que não vai é a seca. Pois ela é a eterna mácula desta terra e não há chuva ou ajuda que salve essa gente sofrida de seu destino trágico.

Rubento, o cão, uivou por seis dias e cinco noites. E, se algum homem pudesse escutar a língua dos animais, escutaria não palavras ou frases ou versos... Escutaria um sentimento: SAUDADE. Pois eles, os animais, ao contrário de deles, humanos, não precisam de palavras para expressar sentimentos. Expressam por si só e isso lhes basta. Talvez por isso sejam tão ricos, os animais. E eles, humanos, tão pobres... tadinhos...

Quando o sol deu adeus a seu posto de castigo eterno àquela terra sofrida, foi a vez de uma minguante lua emergisse por entre os troncos retorcidos das arvorezinhas e por detrás das serras lá dos confins do Sergipe. Minguava como muita gente, esquecida entre o véu de estrelas. Porém, dizem as bocas antigas no Sertão que é na sexta noite após a morte que a alma do morto trafega para o outro mundo. E, por isso, é o dia perfeito para romaria. Assim, em meio à luz das estrelas e sob a vigia desatenta daquela mesma lua, lamparinas caminhavam aos sons de batuques:

TUM-DUMDUM-DUM!

“Iêêêêêê-rêíôôô...
Iêêêêêê-rêíôôô...

Nossa Senhora salve, salve agora,
Esta alma perdida que implora,
Pois, se este é o castigo da morte,
Tu és a salvação, Senhora...”

TUM-DUMDUM-TU-DUMDUM-DUM!

E não só lamparinas, como velas vinham passando, passavam em meio a rostos desfigurados pela escuridão e pela luz. Rostos castigados de pessoas quase tão moribundas quanto aquele que vinha carregado por seis vultos. Ali, por cima da noite, só se podia ver a blusa branca e o chapéu de palha sob a mão de resto tudo era negridão.

Preto sofrido, pobre Bento, morto bandido pela bala de um Birrento... E caminhavam as pessoas, e as velhas senhoras vinham à frente, com seus lenços nas cabeças para espantar o frio quase que contrastante com o calor que se fazia de dia. Uma delas carregava um terço, outra uma imagem de santa, sendo que santa nada tinha. Porém, hoje, todos os pecados eram esquecidos e defeitos apagados. Diante da morte, somos reduzidos a anônimos. Apenas uma massa sonora...

TUM-DUMDUM-TUDUDUM!

“Aiêêêê...
Leva esta alma contigo,
Pois não há mais perigo,
Eis nosso pedido amigo,
Ao nosso pobre partido...

Carregue consigo sua dor,
E dê-lhe um pouco de perdão,
Eis nosso pedido amigo,
Nesse pobre bordão...”

TUM-DUMDUM!

E batiam as chinelas no chão pobre, assim como eram pobres os versos, as antigas, as pessoas, tudo que os cercavam. Celebravam a partida de Bento, como se fosse motivo de festa. Usavam palavras falsas para descrever sentimentos falsos de um falso luto por alguém que poucos ali conheciam. Lá atrás de todos, a passos solitários, vinha Rubento. Não uivava hoje, sequer rosnava ou latia. Vinha silencioso atrás dos homens, com os olhos cheios de lágrimas e o focinho molhado. Pelo costume e pela tristeza. Vinha ele, o cão, atrás dos homens. Ou seria mais humano o cão que os animais homens?

E assim caminhou a romaria até a pequena capela no pequeno arraial. Lá dentro, postaram-se todos para prestar suas ultimas homenagens ao falecido Bento. Rubento, pobrezinho, ficou para trás. Animais só podem ficar dentro da capela, uma pena!

E quanto ao Bento? Ainda não o enterram foi falta de lugar. Bento, preto, indigente, não tinha sequer um lugar para cair morte, literalmente. Entreolhavam-se as pessoas fingindo tristeza, enquanto as crianças – menos experientes na arte da mentira. – riam e tocavam no corpo fedorento do morto. Algumas senhoras se escondiam pelos cantos e tapavam o nariz em seu asco invisível. O frade, então, benze o homem com água Benta. Pobre Bento, sequer sentia aquela água divina sobre seu corpo. Pena que os vivos não podem sentir seu gosto sacro. E, para os mortos, pouca diferença fazia, já não tinham sentidos mesmo.

Frade: Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém... — Adiantou-se. E não disse nada mais. Não há discursos para “ninguéns” como aquele preto velho. E, assim, fechou-se o caixão. Os mesmos seis vultos carregaram o caixão até o fundo da capela. Mas enganam-se aqueles que pensam que Bento, agora pela água Benta, seria enterrado ali. Não, não mesmo. Ordenou-se, e não se sabe quem, seu sepultamento nos fundos de sua humilde venda, numa cova de apenas setenta centímetros – e não sete palmos. – de profundidade.

Eis, então, o fim de mais um nordestino sofrido, nesse mundo bandido chamado Sertão...

quarta-feira, 6 de maio de 2009

pseudocontos, parte I

Arraial d’Ajuda — Ato primeiro, o mito.
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Adentra-se por entre os confins das terras nordestinas e ultrapassa o círculo de fogo. Emerge por entre a caatinga e encontra, por fim, o Sertão. Um Sertão sem fronteiras, verdade ou temporalidade. Estamos num mundo paralelo que de tão próximo chega a ser um espelho da realidade. Não será contada hora, dia, mês ou ano; Resquícios de um novo tempo. Conheça apenas o essencial deste, que contará a sangue e suor a saga daqueles que neste mundo viveram. Severinos, sim, sofridos de d’uma vida sem humanidade. Mas também personagens essenciais para a saga que aqui será descrita.

Lá pros lados do Sergipe, havia um pequeno vilarejo com o nome de Arraial d’Ajuda. Não ajudava ninguém, muito menos era ajudado. Terra pobre, castigada pela seca que vinha sazonalmente durante quase todo ano. Aqui, há apenas três estações: Quente, seca e inferno. E é aqui que começaremos a contar as histórias de alguns poucos sobreviventes dessa terra sofrida, de gente tão simples e maltrapilha...

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Mais um dia nasce minguado no pequeno vilarejo. Uma galinha cisca na porta da venda feita de barro alguns restos do milho do saco que ontem rasgou na porta desta. E, tão logo, é espantada por Rubento, o cão vira-lata que cuidava do posto comercial. Esvoaçada, a galinha saltava para o meio da rua, dando cocoricós, agitando as asas. A porta de madeira velha, pintada de um verde morte é entre aberta e de lá sai um mulato. Seu Bento, filho de filho de filho de escravos, Bento no nome, mas não na vida, pois não há benção na vida do sertanejo.

Bento: Xô, xô, Rubento... — Disse o preto velho batendo o pé e espantando o cão que lambia uma ferida na junta da pata traseira esquerda. Ali, adiante, vinha Dona Firmina, beata de família, que ficou de tia por não ter nenhuma outra valia.

Firmina: Dia, Bento.

Bento: Ôba. — Respondeu o outro com um riso amarelo.

E, assim, pouco a pouco as coisas iam se ajeitando, as pessoas passando e o dia clariando. Um jegue passava com Maninho carregando na cangaia um parco milho da fazenda de seu pai. Marianinha, filha do coronel Deotério, caminhava com um guarda-chuvinha fino de seda trazido lá dos confins de Salvador. E assim passavam. Passavam todos até a passarada.

E, por volta do meio da matina, chegou Zé de Biré, jagunço de confiança de Deotério. De uma lado uma pistola, do outro um facão amolado. Subiu os degraus esculpidos no barro batido da venda de Seu Bento e bateu com a mão sobre o balcão.

Zé: Qual cachaça você tem aí?

Bento: Desculpe, seu Zé, mas está em falt--...

Zé: Eu perguntei... qual cachaça você tem, não me importa se está em falta... — Disse o jagunço, alterando a voz. O bafo indicava que aquele não foi o primeiro lugar visitado pelo homem. Também pudera, o Coronel tomava conta de, pelo menos, três vilarejos além de Arraial d’Ajuda.

Bento: O carregamento da cidade ainda não chegou e...

PISTUIN! — Um sopro. Passos. Uma batida seca. MORTE. Caído ali, no chão de sua própria venda, com um rastro de sangue que vazada do portão, passando pelo balcão até o corpo jazia Seu Bento. O preto velho filho de filho de filho de escravos. Zé de Biré saiu da venda sem sua cachaça, mas Rubento, o cão, deliciava-se com o sangue viscoso do velho Bento. Lambia as patas sujas de vermelho, esbaldando-se num banquete tenebroso. A galinha, pobrezinha, ciscava do outro lado da rua. Enquanto uma velha qualquer cantava em romaria:

“Que deus tome conta de sua alma,
Pois este mundo já não tem mais calma,
Encontre o juízo final nas mãos de deus, ó Bento,
Pois aqui fica o seu relento...”

E, tão logo, mais outras vozes se juntaram, profetizando um mito que era cantado pelas bandas do sertão, transformando em poesia um herói da Caatinga:

“Montado em seu cavalo branco,
Eis que vem o herói da caatinga,
Vestido num véu prateado,
Eis que vem João da Matinga,

Aiêêê...

É o justiceiro do Sertão,
Com sua faca, pistola e gibão,
Protetor dos indefesos,
Não treme nem pra Coronel nem pra jagunço,
Eita pontaria boa do cão,

Aiêêê...”

Zé: PAREM A CANTORIA! — Gritou o jagunço, subindo em seu burro e atirando para cima. — PAREM A CANTORIA, CAMBADA DE MISERAVI! Este que vocês esperam não passa de um fajuto, pois se fosse homem já tinha vindo assisti vocês, gente sofrida, do que apenas cavalgar por entre os Mandacarus desse Sertão...

E assim partiu Zé de Biré em seu burro, seguido pela cantoria. E, a noite toda ela foi ouvida, em meio ao cortejo fúnebre de Seu Bento. Dizem que João da Matinga ouve de longe, através das palmas o choro dos mortos e vem em seu encalço para mandar para o mesmo lugar os assassinos do Sertão. E, assim florescia no chão árido, a esperança da chegada d’um herói as terras longínquas do Arraia d’Ajuda...