Arraial d’Ajuda — Ato primeiro, o mito.
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Adentra-se por entre os confins das terras nordestinas e ultrapassa o círculo de fogo. Emerge por entre a caatinga e encontra, por fim, o Sertão. Um Sertão sem fronteiras, verdade ou temporalidade. Estamos num mundo paralelo que de tão próximo chega a ser um espelho da realidade. Não será contada hora, dia, mês ou ano; Resquícios de um novo tempo. Conheça apenas o essencial deste, que contará a sangue e suor a saga daqueles que neste mundo viveram. Severinos, sim, sofridos de d’uma vida sem humanidade. Mas também personagens essenciais para a saga que aqui será descrita.
Lá pros lados do Sergipe, havia um pequeno vilarejo com o nome de Arraial d’Ajuda. Não ajudava ninguém, muito menos era ajudado. Terra pobre, castigada pela seca que vinha sazonalmente durante quase todo ano. Aqui, há apenas três estações: Quente, seca e inferno. E é aqui que começaremos a contar as histórias de alguns poucos sobreviventes dessa terra sofrida, de gente tão simples e maltrapilha...
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Mais um dia nasce minguado no pequeno vilarejo. Uma galinha cisca na porta da venda feita de barro alguns restos do milho do saco que ontem rasgou na porta desta. E, tão logo, é espantada por Rubento, o cão vira-lata que cuidava do posto comercial. Esvoaçada, a galinha saltava para o meio da rua, dando cocoricós, agitando as asas. A porta de madeira velha, pintada de um verde morte é entre aberta e de lá sai um mulato. Seu Bento, filho de filho de filho de escravos, Bento no nome, mas não na vida, pois não há benção na vida do sertanejo.
Bento: Xô, xô, Rubento... — Disse o preto velho batendo o pé e espantando o cão que lambia uma ferida na junta da pata traseira esquerda. Ali, adiante, vinha Dona Firmina, beata de família, que ficou de tia por não ter nenhuma outra valia.
Firmina: Dia, Bento.
Bento: Ôba. — Respondeu o outro com um riso amarelo.
E, assim, pouco a pouco as coisas iam se ajeitando, as pessoas passando e o dia clariando. Um jegue passava com Maninho carregando na cangaia um parco milho da fazenda de seu pai. Marianinha, filha do coronel Deotério, caminhava com um guarda-chuvinha fino de seda trazido lá dos confins de Salvador. E assim passavam. Passavam todos até a passarada.
E, por volta do meio da matina, chegou Zé de Biré, jagunço de confiança de Deotério. De uma lado uma pistola, do outro um facão amolado. Subiu os degraus esculpidos no barro batido da venda de Seu Bento e bateu com a mão sobre o balcão.
Zé: Qual cachaça você tem aí?
Bento: Desculpe, seu Zé, mas está em falt--...
Zé: Eu perguntei... qual cachaça você tem, não me importa se está em falta... — Disse o jagunço, alterando a voz. O bafo indicava que aquele não foi o primeiro lugar visitado pelo homem. Também pudera, o Coronel tomava conta de, pelo menos, três vilarejos além de Arraial d’Ajuda.
Bento: O carregamento da cidade ainda não chegou e...
PISTUIN! — Um sopro. Passos. Uma batida seca. MORTE. Caído ali, no chão de sua própria venda, com um rastro de sangue que vazada do portão, passando pelo balcão até o corpo jazia Seu Bento. O preto velho filho de filho de filho de escravos. Zé de Biré saiu da venda sem sua cachaça, mas Rubento, o cão, deliciava-se com o sangue viscoso do velho Bento. Lambia as patas sujas de vermelho, esbaldando-se num banquete tenebroso. A galinha, pobrezinha, ciscava do outro lado da rua. Enquanto uma velha qualquer cantava em romaria:
“Que deus tome conta de sua alma,
Pois este mundo já não tem mais calma,
Encontre o juízo final nas mãos de deus, ó Bento,
Pois aqui fica o seu relento...”
E, tão logo, mais outras vozes se juntaram, profetizando um mito que era cantado pelas bandas do sertão, transformando em poesia um herói da Caatinga:
“Montado em seu cavalo branco,
Eis que vem o herói da caatinga,
Vestido num véu prateado,
Eis que vem João da Matinga,
Aiêêê...
É o justiceiro do Sertão,
Com sua faca, pistola e gibão,
Protetor dos indefesos,
Não treme nem pra Coronel nem pra jagunço,
Eita pontaria boa do cão,
Aiêêê...”
Zé: PAREM A CANTORIA! — Gritou o jagunço, subindo em seu burro e atirando para cima. — PAREM A CANTORIA, CAMBADA DE MISERAVI! Este que vocês esperam não passa de um fajuto, pois se fosse homem já tinha vindo assisti vocês, gente sofrida, do que apenas cavalgar por entre os Mandacarus desse Sertão...
E assim partiu Zé de Biré em seu burro, seguido pela cantoria. E, a noite toda ela foi ouvida, em meio ao cortejo fúnebre de Seu Bento. Dizem que João da Matinga ouve de longe, através das palmas o choro dos mortos e vem em seu encalço para mandar para o mesmo lugar os assassinos do Sertão. E, assim florescia no chão árido, a esperança da chegada d’um herói as terras longínquas do Arraia d’Ajuda...
Meu Deus!! Muito bom, bom msmo. Nossa me arrepiei até. Adorei as falas e a descrição do ambinete. Continue logo viu? =)
ResponderExcluirMuitooooo bom man! As descrições, a forma nua e crua de levar o leitor.Cara, gostei! Desenvolva!Quero saber se João da Matinga vem ou não ;P
ResponderExcluirmizeravão adoro você :*
"Somos muitos Severinos
ResponderExcluiriguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida)."
(Morte e Vida Severina - João Cabral de Melo Neto)
Só lembrei desse trecho na hora que li os primeiros parágrafos.
Você, bem como João Cabral de Melo Neto, Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz ou qualquer outro autor que se interessou em escrever grandes obras da literatura nacional com o tema voltado para a vida castigada do sertão, conseguiu com humildade retratar um episódio cotidiano que a muitos deles tomaria muito tempo e palavras (sabe como esses autores são/eram muito apegados a detalhes xD)
Me deixou entretida no texto do começo ao fim e me lembrou do meu terceiro ano hehehe
Adorei e vou querer acompanhar esta saga ;D
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